As conexões de traficantes nos presídios federais são apontadas como a gênese das migrações criminosas para o Rio. Previstas na legislação desde 1984, essas penitenciárias começaram a ser construídas em 2006, quando foi inaugurada a de Catanduvas, no Paraná. Na época, houve forte pressão para que as obras fossem concluídas com rapidez para que Beira-Mar pudesse ficar em definitivo num presídio — capturado na Colômbia em 2001, ele havia trocado de cadeias no Brasil mais de dez vezes ao longo de cinco anos.
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Luiz Fernando da Costa, o Fernandinho Beira-Mar, um dos integrantes da cúpula do Comando Vermelho
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Uma mudança legislativa, em especial, aparece como causa do estreitamento da relação entre os presos: inicialmente, eles eram transferidos para cumprir até 360 dias, prorrogáveis por igual período, nessas unidades. Agora, são no mínimo três anos de reclusão, prorrogáveis pelo mesmo tempo, com possibilidade até de cumprimento de pena. Márcio dos Santos Nepomuceno, por exemplo, o Marcinho VP, apontado como chefe do Comando Vermelho, está há 18 anos no sistema federal.
— O que nasceu como medida emergencial para conter a violência local acabou se transformando em catalisador da expansão das facções para todo o território brasileiro. O argumento oficial sustenta que isolar líderes em presídios de segurança máxima seria suficiente para enfraquecer sua capacidade de comando, porém o isolamento físico não representou avanços e, ao contrário, dentro das cadeias federais criminosos de diferentes estados e de diferentes facções passaram a conviver lado a lado, trocando informações, métodos de ação e contatos. O que era um problema estadual se tornou uma questão nacional — explica o advogado criminalista Jaime Fusco.
Histórico de Beira-Mar nos presídios federais
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Essa realidade faz lembrar o contexto de formação do próprio Comando Vermelho, em 1979. À época, presos comuns, como ladrões de banco e sequestradores, passaram a conviver com presos políticos da ditadura. Essa interação possibilitou a organização do grupo, que, num primeiro momento, reivindicava direitos no Instituto Penal Cândido Mendes, penitenciária da Ilha Grande, na Costa Verde do Rio. Porém, já fortalecidos, os bandidos passaram a usar o que aprenderam atrás das grades em venda de drogas e tomada de territórios.
Danilo Lovisaro, procurador-geral de Justiça do Ministério Público do Acre e presidente do Grupo Nacional de Combate às Organizações Criminosas (GNCOC), reforça essa tese:
— Combater as facções no Brasil exige o isolamento de seus chefes. No entanto, quando transferimos esses chefes locais para penitenciárias federais, eles retornam ainda mais fortalecidos após o contato com outros líderes. Estamos permitindo que as organizações criminosas ampliem suas conexões. Uma liderança estadual, sem relevância nacional, acaba se aproximando de chefes mais influentes, estabelece novas alianças e volta ao estado de origem com maior poder e articulação.
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diretor-geral da Polícia Penal Federal, Marcelo Stona, discorda de Lovisaro e garante que a inteligência por trás do funcionamento dos presídios inviabiliza esses contatos:
— Eu acho um pouco simplista a gente tentar atribuir problemas de segurança pública a um evento único, partindo de premissas que acabam não sendo verdade. O crime não se fortalece dentro do sistema penitenciário, pelo contrário, ele é contido. As pessoas acreditam que, se o preso X e o preso Y estão na mesma penitenciária, eles conversam e têm convívio, mas isso não é verdade.
Segundo ele, a própria arquitetura das unidades foi estruturada para enfraquecer o convívio entre os criminosos: em cada um dos quatro blocos do presídio, há quatro alas com 13 celas individuais cada uma. Nas duas horas de banhos de sol diários, os detentos só podem conversar no máximo em trios e são sempre monitorados.
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Um policial penal da unidade de Campo Grande, porém, explica sob condição de anonimato que os presos conversam nas alas, pois não há estrutura para isso:
— As celas não têm isolamento acústico. Então, eles podem conversar, já que cada um consegue escutar o outro. No entanto, os diálogos são acompanhados por escutas ambientais autorizadas judicialmente.
Ida para o Rio com a chancela de Beira-Mar
Um traficante nascido no Ceará e que ganhou fama no crime em Rondônia tem desempenhado papel direto na briga do Comando Vermelho com a milícia da Zona Sudoeste carioca. Luiz Carlos Bandeira Rodrigues, o Da Roça ou Zeus, chegou ao Rio pouco tempo após deixar a Penitenciária Federal de Campo Grande e, segundo a Polícia Civil, ganhou força no CV ao tomar a Muzema. Como reconhecimento, ele virou chefe do tráfico na comunidade.
A migração de Zeus para o Rio, em 2022, não foi contestada. Amigo de Luiz Fernando da Costa, o Fernandinho Beira-Mar, um dos nomes da cúpula do Comando Vermelho, ele chegou à cidade chancelado. Os dois, como apontam autoridades, estreitaram laços no sistema penal federal — o histórico prisional de ambos mostra que eles estiveram, de 2019 a 2021, presos em Campo Grande.
— Ele já chegou ao Rio com a chancela do apadrinhamento de Beira-Mar, mas, quando ajudou a facção a dominar a região da Muzema, conquistou de vez o respeito da chefia local — afirmou uma fonte na polícia sob condição de anonimato.
Denúncia do MPRJ fala sobre atuação de Zeus na guerra da Zona Sudoeste
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Beira-Mar e Zeus, porém, se conheceram anos antes. Investigações da Polícia Civil de Rondônia revelam que desde 2015 eles mantinham contato à distância, presos em unidades diferentes: Beira-Mar, na federal de Porto Velho; Zeus, no Centro de Ressocialização do Cone Sul, em Vilhena. Um áudio interceptado entre o traficante e um homem identificado por Racional, membro do Comando Vermelho em Maceió, expõe até dicas de como entrar em contato com Beira-Mar:
“Eu queria mandar um catatau lá para o Fernandinho Beira-Mar, com quem eu mando, irmão? […] É para chegar na mão dele”. Zeus, então, responde: “Você faz o seguinte. Elabora aí o informativo e lança no WhatsApp do Matemático, que vou encostar ali na cunhada para ver o dia que pode mandar lá para dentro (do presídio). Vai passar do WhatsApp para o papel, do papel vai para a mão do advogado, e o advogado bate lá e manda na mão do corre”.
Além disso, a chegada de Zeus à capital fluminense coincide com o início da expansão do Comando Vermelho pela Zona Sudoeste, historicamente dominada pela milícia. Atualmente, ele se refugia no Complexo do Alemão, na Zona Norte, comandando tanto a Muzema quanto Rondônia. A posição de chefe, ainda incomum para traficantes de fora, também está ligada à habilidade bélica e à agilidade para conseguir armas e munições.
Além de Zeus e Beira-Mar, um processo ao qual o EXTRA teve acesso destaca uma amizade entre Rogério Avelino da Silva, o Rogério 157, também do Comando Vermelho, com Geovane dos Santos Niches, conhecido por Bomba, chefe da facção Primeiro Grupo Catarinense (PGC) — a maior de Santa Catarina — no sistema penal federal. No documento, um agente do Grupo de Atuação Especial de Combate às Organizações Criminosas (Gaeco) desse estado, órgão do Ministério Público, afirmou que os dois se aproximaram na unidade de Porto Velho, em Rondônia, e eram até assistidos por advogados em comum.
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